sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O preconceito contra efeminados dá as caras. Como combatê-lo?

O relógio marcava 19h e eu esperava mais um rapaz da internet, o "MachoMásculo". Estava apreensivo. Era nosso primeiro encontro "real".
Havia, porém, outro motivo para minha apreensão. MachoMásculo não curtia efeminados de jeito nenhum! Não sou uma flor, mas estou longe de ser exemplo de macheza. Além disso, na minha opinião, perfis assim ou escondem alguém que é efeminado, não se aceita e desconta nos outros; ou quem policia, implacável, qualquer virada de mão. Normalmente, fujo, mas, por obra do acaso, eu e MachoMásculo havíamos nos dado bem.
Ele não demorou a chegar... E não é que, de fato, eu era mais másculo que o Macho? Resolvi fazer dele uma fonte para a pauta de A Capa: preconceito contra efeminados - e ficamos na amizade. Amor e trabalho não se misturam.
Desejo de mulher
Em nossa conversa na cafeteria, MM disse que os gays sofriam mais preconceito por causa dos efeminados: "São escandalosos e forçados. Não dá pra exigir respeito assim". Suas frases reproduziam o que ouvi da boca de muitos gays antes mesmo de produzir esta reportagem. "Sim, eles dão muita bandeira, querendo ser mulheres. Eis o motivo do preconceito", diz o professor e produtor de vídeo Celso Freitas, 39 anos, ao ser perguntado se efeminados contribuem para o preconceito contra gays em geral.
"Na cabeça de muitos, sim", diz o promoter Fran Salles, diante da mesma pergunta. "Muitos querem ser mulheres. Acho que não precisa ser mulher, mas ser autêntico. Para ser afeminado, tem de ser centrado e ter consciência do que é", pondera. O jornalista e sociólogo Ferdinando Martins, 28, também aposta no desejo de ser mulher: "Em geral, indica uma vontade de ser tratado como mulher, que o outro abra a porta, carregue suas coisas, mande flores".
Cultura e sociedade
Até aqui, já é possível traçar algumas afirmações comuns em relação aos efeminados:1. Querem ser mulheres; 2. São escandalosos; 3. "Turbinam" o preconceito contra os gays.
Será tudo verdade? Comecemos pelo primeiro item. Falar de efeminação implica falar de papéis femininos e masculinos - mas será que sempre o efeminado quer "ser mulher"? "Em alguns casos, isso pode acontecer, [mas] não podemos generalizar", diz João Pedrosa, 50, psicólogo analista do comportamento e terapeuta sexual.
O tradutor e coordenador de projetos sociais Lula Ramires, 47, apresenta outra hipótese: "No Brasil, a imagem dos homossexuais está associada a traços considerados femininos. Construiu-se uma trajetória social que os próprios homossexuais assimilaram: quando um menino ou rapaz tem gestos delicados, já se suspeita, ou se decreta, que ele é veado. Uma pessoa que apresente tal comportamento passa a buscar em si própria a confirmação de uma atração pelo mesmo sexo".
"Essa discussão precisa ser entendida a partir da construção sociocultural do que é masculino e feminino", diz o professor, jornalista e ativista gay Julian Rodrigues, 34. "Ao masculino, são atribuídas características como força, voz grave, pouca afetação, expressões que remetam ao universo dos esportes ou da caça às mulheres, etc. O gay começa a fugir do papel tradicional ao ter seu desejo orientado para outros homens - mas não quer dizer que rompa com a construção de gênero do masculino dominante. Nisso, chegamos a outro ponto. Há homens heterossexuais que não têm comportamento ou características típicas do papel masculino tradicional - e eles sofrem preconceito também, ou seja, não basta ser homem. Tem de ser machão, cumprir todo o script"."O que se pode perguntar", continua Julian, "é por que tantos gays são efeminados. Porque fogem do padrão hétero e querem se mostrar diferentes mesmo? Por uma questão identitária? Para se aproximar dos bofes? Essas questões sempre me perseguiram".
"A feminilidade entre os gays pode estar ligada a uma questão cultural", concorda João. "Historicamente, sempre se ligou homossexualidade ao feminino. Isso ocorreu porque quem sempre apareceu foram a travesti e a transexual. O gay masculinizado veio aparecer depois da década de 1970. Ele sempre existiu, mas clandestinamente". No entanto, diz o terapeuta, há ainda uma hipótese biológica: "Estudos científicos indicam que a questão da masculinização e feminilização nos organismos está ligada aos hormônio, e parece que isso é definido na vida intra-uterina. É o caso do gay contido que faz tudo para não dar bandeira, mas não consegue esconder seu jeito feminino de ser".
Fechação com bandeirada
Ora, se o desejo de "ser mulher" não é válido para todos os efeminados, que dirá o escândalo! Começa pela dificuldade em definir quando, afinal, alguém é efeminado. "Parece fácil responder, mas não é. Há diferentes níveis, digamos assim, de efeminação. Talvez, a maior parte de nós, gays, seja efeminada, em diversos graus", diz Julian.
Segundo João, "temos de diferenciar dois tipos de gays efeminados. O primeiro é o caricato com gestos femininos, maneira de se vestir e comunicação própria e exuberante. A maneira desse gay se comportar está ligada a uma questão cultural. O segundo é o gay efeminado contido, que não reproduz a maneira caricata feminina, mas possui gestos próximo dos das mulheres, voz feminina". De toda forma, diz Fran Salles, "ser efeminado não impede ninguém de exercer um papel na sociedade".
Julian vai além: "Politicamente, eles cumprem um papel importantíssimo. São vanguarda, pára-raios, subversivos, corajosos, engraçados, irônicos. São a tropa de choque, a linha de frente da visibilidade gay". O antropólogo e militante gay Luiz Mott, 62, faz uma ressalva: "Embora possa ser considerado revolucionário o comportamento efeminado, andrógino, ele também tem seu lado conservador, à medida que repete e consagra a bipolaridade macho-fêmea. Muitos efeminados não ousam adotar o homoerotismo também no papel de gênero".
Mott, no entanto, defende o direito à efeminação, mesmo quando exuberante: "Tenho ouvido, após palestras em universidades, muitos reclamarem dos gays que não se respeitam, criticando seu espalhafato, exibição. Procuro relativizar, mostrando que também os rastafaris mais exagerados têm direito à sua estética e devem ser respeitados. Obviamente, bichas loucas fazem de sua efeminação estratégia para enfrentar o preconceito, pois todos temem ser vítima de barraqueiras, mas também há um forte componente exibicionista: a única forma de terem seus 15 segundos de glória numa sociedade tão homofóbica e machista".
Preconceitos siameses
Homofobia e machismo, aliás, são também palavras-chave nessa discussão. "É preciso entender que a homofobia é filha do machismo, do sexismo. Os gays são considerados inferiores porque são aproximados das mulheres. São homens que se negaram o papel de homem-machão-heterossexual. O gay sofre preconceito e o efeminado, mais ainda. A travesti, mais ainda. Quanto mais próximo da figura feminina, mais preconceito", diz Julian Rodrigues. Talvez por isso, João Pedrosa acredite que parta dos héteros a maior hostilidade: "É difícil mensurar [...], mas penso que os héteros são mais preconceituosos".
O jornalista Vides Júnior, 37, discorda: "Acho que há mais preconceito entre os próprios gays. É comum ouvir e ler em anúncios: descarto efeminados. O número pode até ser menor, mas a carga que acompanha o preconceito é muito maior". Na verdade, a própria dificuldade de se aceitar gay pode estar por trás disso. "Há gays com dificuldade em aceitar sua homossexualidade, que criticam e não querem a companhia do efeminado porque este pode, de alguma forma, denunciá-los", explica João.
Efeitos colaterais
Fato é que histórias de discriminação se multiplicam. "Já vi diversas pessoas serem discriminadas", conta o jornalista Leonardo Cruz, 35. "Numa seleção para estagiários, tinha um rapaz bem delicado, com a sobrancelha feita, pele lisa, blusinha apertada. Tinha um bom currículo, mas a banca quis eliminá-lo por não ser o padrão para atendimento ao público. Fui o único voto contrário".
A discriminação profissional é bem freqüente. "São muitos os exemplos, desde perseguição no trabalho, perda de emprego e reprovação em seleção. Este último é muito comum nos dias de hoje", diz Pedrosa - mas até um simples passeio pode ser arriscado. "Certa vez, eu estava com um amigo no metrô, efeminadíssimo, e dois rapazes começaram a tirar sarro com ele. Virei bad boy e acabei dando uma surra nos dois", conta Vides Júnior. Esse tratamento deixa seqüelas. "O risco de afetar a auto-estima é o primeiro dos problemas, [além de] maior disposição para envolvimento com álcool ou drogas", diz o médico Murilo Sarno, 33. "Há muitos efeitos colaterais, como sentimento de inferioridade, depressão, isolamento social", complementa Pedrosa.
Para o pesquisador Wallace Navalha, 36, efeminado assumido, as piores lembranças vêm da escola: "Minhas aulas de educação física eram um enxovalho de piadas, apelidos ou xingamentos. Às vezes, era chamado pelo personagem estereotipado televisivo da vez, tipo Capitão Gay, Painho - e por aí vai. Isso sem falar do assédio, que me fez passar toda a adolescência sem entrar num banheiro de escola ou vestiário, por medo de estupro. No colegial, eu não podia visitar uma amiga em outra classe que começavam a me xingar até que eu saísse - e nunca vi um professor se solidarizar comigo".
A referência à mídia é emblemática. O leitor deve ter percebido muitos jornalistas entre os entrevistados. Não é por acaso: perguntamos a eles se a mídia ajuda na manutenção do preconceito. "Certamente. Há teses e dissertações sobre isso", responde Leonardo Cruz. "Principalmente, programas de mau gosto, como A Praça é Nossa, e os humorísticos da Globo. Sem falar dos comerciais de cerveja, que incitam os homens a agirem como caçadores de mulheres, afirmando o tempo todo sua virilidade", opina Vides Júnior.
Masculinos ou femininos?
Dá para concluir que essa história de que os efeminados aumentam o preconceito contra gays não é "bem assim". Via de regra, o preconceito já existe, e o efeminado é apenas a "comissão de frente" - mas será que dá para mudar?
Antes de tudo, é preciso considerar que nem todos têm preconceito contra as "pintosas". Há, inclusive, quem as prefira. "Pelo menos, três amigos meus só namoram rapazes efeminados", conta Murilo Sarno. "Prefiro efeminados para o sexo. São simplesmente deliciosos", admite Vides Júnior.
Depois, é preciso questionar os modelos e os estereótipos que nos são transmitidos desde cedo. "Há décadas, as militantes feministas nos fizeram entender que tudo isso é construção social, que as diferenças entre homens e mulheres resultam da maneira como são criados e tratados pela sociedade. Por que temos de ser masculinos ou femininos, como se fosse uma opção? Sonho com um dia em que essa distinção não terá mais sentido", finaliza Lula Ramires.
* Matéria originalmente publicada na edição #12 da revista A Capa em abril de 2008